DOCTOR WHO: A "primeira temporada" que não deveria ter sido

Cartaz da 14ª temporada de Doctor Who, com Ncuti Gatwa / Divulgação / BBC

Olha,  no decorrer destes últimos dois meses, eu busquei diversas formas de abordar uma review da 14ª temporada de Doctor Who aqui no blog. Pensei em fazer uma análise semanal de cada episódio ou até uma compilação de 2 em 2 episódios, mas vi que isso apenas iria consumir o meu tempo mais do que as teorias complexas que a série tanto traz à mente de seus fãs, então decidi apenas dissertar sobre meus sentimentos desta temporada, que certamente é um grande acerto de contas do showrunner Russell T. Davies ao retomar as rédeas desta carroça desgovernada que viaja pelo tempo e pelo espaço, no melhor sentido possível.


Davies nos assegurou, durante todo esse trajeto, que Doctor Who está aqui para ficar, e que poderia muito bem se erguer de pé ao redor de outras grandes franquias midiáticas do universo geek contemporâneo, como Marvel e Star Wars (acho que, até por conta disso, a chegada da série na plataforma da Disney Plus foi um excelente acerto), e a equipe por trás deste desafio (Bad Wolf Studios e BBC) não apenas trabalhou com afinco e dedicação para alcançar esse objetivo, como também nos apresentou diversas informações adicionais para agregar ao conteúdo da série, como vídeos por trás da produção dos episódios e um canal de podcast oficial para o show, lançando discussões semanais sobre os acontecimentos das últimas aventuras do Doutor.


No papel, a execução da produção certamente pode ser considerada como um tiro certeiro no alvo, e o resultado final foi uma obra divertida e que consegue nos entreter nos melhores e nos piores momentos, nos trazendo um agradável suspiro nostálgico de tudo o que funcionava (e até o que não funcionava) na primeira era de Davies no cargo (2005 - 2009), mas um dos principais erros desta temporada (e de todo o marketing da série por si só), particularmente falando, foi nos apresentá-la definitivamente como uma temporada introdutória para Doctor Who, assim como as de 2005, 2010 e até a de 2017 (não que ela não funcione como tal, mas existe um fator que a torna numa das mais inaptas para alcançar seu objetivo)


Foto de Russell T. Davies, em estreia de 14ª temporada de Doctor Who / Divulgação / Bad Wolf Studios

Antes de tudo, os pontos positivos: Davies e sua equipe conseguem muito bem acertar na escolha do elenco, principalmente quando o assunto envolve o Doutor e sua companheira de viagem. Millie Gibson traz uma leveza à personagem de Ruby Sunday que nos auxilia a aceitar a loucura ao nosso redor, servindo muito bem ao seu papel de “âncora narrativa” para a jornada, seja pelo mistério intrigante por trás de sua história ou pela sua conexão ao mundo atual, apresentada pelas suas relações familiares e sua interação perante as diversas mudanças temporais. Outro ponto a ser descrito da atriz é que, mesmo que ela brilhe muito ao lado de sua dupla intergaláctica, ela tem maturidade e sensatez para se cuidar nos mais inóspitos ambientes, e consegue muito bem liderar sua aparição em tela, o que foi bem evidenciado no episódio 73 Yards, onde ela comanda 95% da trama.


Mas admito que desde o primeiro momento que ele apareceu em cena (na bi-regeneração de The Giggle, um dos especiais de 60 anos da série), Ncuti Gatwa é o Doutor, sem sombra de dúvidas. A escolha do jovem ator de Sex Education para interpretar o Senhor do Tempo foi a melhor decisão feita pela produção, trazendo novos ares necessários para o personagem (principalmente depois da era de Jodie Whittaker e do retorno de David Tennant ao papel, durante os especiais já mencionados). Gatwa é a melhor versão do Doutor para essa nova geração de fãs, que consegue engajar com seu exacerbado carisma e sua exímia demonstração de maturidade emocional para um ser que já viveu tanto e já perdeu muitos: emoção é o nome do jogo, e Gatwa tem muito o que nos mostrar ainda, mas essa primeira rodada já conseguiu consolidá-lo no papel de forma assertiva.


Em questão da narrativa apresentada, a série consegue nos trazer em seus 9 episódios uma mistura do novo com o velho, que só consigo descrever como um resultado agridoce: quando a temporada puxa vertentes narrativas semelhantes às da primeira era de Davies (como “o mistério a ser resolvido na temporada”, “o vilão que pode causar uma destruição global no final” e “a progressão de acontecimentos no tempo moderno”) ou faz referência aos últimos 60 anos da série, o resultado é cativante - principalmente para aqueles que sabem do que já aconteceu. Mas a vertente da fantasia e do misticismo que estão trazendo de volta para essa nova “versão”, com a aparição de divindades e criaturas mitológicas, nos trouxe uma sensação de “novidade” que muitos sentiam falta depois da era passada, comandada por Chris Chibnall


Mesmo assim, deslizes são evidentes, e o amargo acerta um pouco no paladar: muito destes novos mitos permitem que vários conflitos deixem de ter uma explicação plausível (e até satisfatória), trazendo os momentos de “É Doctor Who, nem tudo faz sentido, aceita que dói menos” com mais tonalidade e evidência. Por outro lado, Davies usufrui deste misticismo e da cronologia da série para fazer alguns leves retcons (o ato de alterar fatos previamente estabelecidos na continuidade de uma obra ficcional), entretanto, mesmo que o mais sério deles tenha mudado significativamente parte da história no final da temporada, não foi tão ultrajante quanto o plano de Chibnall com o arco narrativo do Timeless Child, que ainda assombra muitos fãs até hoje…


Foto de Ncuti Gatwa e Millie Gibson, em set de Doctor Who / Reprodução / BBC

O nível de qualidade técnica da produção também deve ser elogiado aqui: a série certamente alcançou o auge de seu nível de qualidade audiovisual, seja no design dos aliens em cena, seja na qualidade dos cenários e figurinos ou até mesmo na excelente computação gráfica utilizada na abertura, o que me faz lembrar que a trilha sonora também está incrível (o que já era de se esperar, com o retorno de Murray Gold na composição das músicas da série). Entre alguns leves escorregões na conclusão de alguns arcos narrativos, só tenho a agregar que os pontos mais baixos da temporada não chegaram a roubar qualquer incentivo de ver o próximo episódio, já que todo o conteúdo apresentado me fez apenas sentir que é mais uma aventura básica de Doctor Who (se é que dá pra colocar algo de básico em qualquer história da série…).


Mas por fim, em meio à alegria e a tristeza desta nova “primeira temporada”, o maior erro dela foi ser uma nova “primeira temporada” que, no pior dos casos, não recebeu o devido tempo para tudo o que importa! Senti que teve muita explicação solta (por desencargo de consciência dos roteiristas) para muito conteúdo que deveria ser mostrado devidamente em tela, ter sido exemplificado da maneira que apenas a série poderia fazer! A falta de abordar alguns pontos relevantes da essência de Doctor Who me pareceu muito necessário (como eles terem citado os Daleks apenas no último episódio), e tudo isso se resolve com uma simples solução: nos dê mais tempo de tela! 8 episódios foi muito pouco para conseguir consolidar de forma efetiva tudo o que se precisa saber sobre o Doutor e, principalmente, um verdadeiro sentimento de pertencimento e de afeição à amizade entre ele e a Ruby, sem falar também de todo o mistério rondando ela, que poderia ter sido executado de forma bem diferente.


Por experiência pessoal, vindo de um fã que consumiu as primeiras 7 temporadas no período de uma semana e que se sentiu menos cansado nisso do que agora, com uma temporada de 8 horas no decorrer de 2 meses, eu só consigo compreender que Doctor Who precisa de mais tempo, precisa de mais episódios para abranger mais suas ideias e abraçar por completo toda a criatividade que pode nos fornecer, não importa o quão ruim possa ser a qualidade técnica. O texto ficou grande (foi mal) e posso ter perdido a linha de raciocínio no meio, mas isso tudo é só mais uma forma de demonstrar meu carinho por uma das séries que eu, por tantos anos, considerei como a melhor obra da ficção que eu já tinha consumido (ainda é uma delas, mas conheci fortes concorrentes nos últimos anos).


Novo logo de Doctor Who / Divulgação / BBC

O importante é que o futuro do Doutor parece mais brilhante do que um dia já foi, mas temos que ver com a Disney e com a BBC se elas estão dispostas a deixar essa luz queimar tão forte quando ela deve, e permitir que as portas da TARDIS se abram por completo para a próxima geração. Eu espero que essa luz que conseguimos ver pela fresta da porta seja um bom sinal para Gatwa e para Davies, que continuarão comandando essa aventura para a próxima temporada.


Os especiais de 60 anos e a SEASON 1 (14ª temporada) de DOCTOR WHO já está disponível na Disney Plus

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